quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O velho boticário

(Ah!Não sei o porquê,mas leiam depois de beberem dois vinhos e pensarem na pessoa do Modigliani e o quanto ele representou pras cores...Ele foi muito mais abrangente do que este pintor chatíssimo Picasso!)

Havia acabado de mudar-me e todos sabem o critério e a conversa da mudança,pode ser rápida ou demorada;depende da pronúncia e classificação de seu veredicto.O mais certo de tudo é que sempre deixamos algo pra trás no desequilíbrio da pressa,ou ficamos surpresos com a quantidade de papéis que não deveriam mais existir por ali.Cheguei na nova casa pelas duas da tarde e com grande agitação pública,o caminhão lá fora começava a retirar os móveis arranhados e a fumaça preta do cano da descarga preenchia todo quarteirão.Eu chegava a anotar algumas coisas rapidamente e olhava o relógio como se o habitual não existisse,teria que encher aquele espaço de forma instintiva, abarrotar toda a sala e quarto de coisas,ganhar vida e cores pelos corredores.
O arrasamento da morte de meu tio ainda emergia alguns fantasmas e cogitações o qual não conseguia apagar
da memória de forma alguma, e a cômoda mal alumiada e reta feita em art nouveau onde minha tia se pintava, foi logo prontamente vendida;após tal feito,pude então domesticar o sossêgo voluntário.
Lembro-me que eu tinha oito anos e pouca fala,e havia certa inscrição no madeiro em que eu passeava os dedos com fina rigidez,eram frases bem redondas e deitadas no marrom sobre a queda da Bastilha.Ela foi primeiro que meu tio cantando La Marseillaise,enquanto que ele se despegou do céu e de Deus.Conheceu a Tiquira por vinte anos e nunca mais renegou um copo, e quando já beirava os seus setenta anos de idade, bateu a mão robusta sobre a mesa e disse que queria conhecer a Amazônia e seus pássaros e viraria Boticário.
No início eu achei aquilo tudo uma tremenda loucura, pra mais tarde respeitar a sua prosa científica amadora.Naquele mesmo período acontecido eu despejei meu turbilhão de impaciências em muitos, comprei os sucessos e insucessos reprováveis do velho homem, vivi sem nenhum ato próprio,sem nenhuma teoria nova e a casa amarela sentia a comiseração de meus protestos incharem sobre as veias.
Depois de quatro anos saudosos escreveu uma carta pra mim inquieto,contando que havia visto Mapinguary e que amava as ariranhas e as Samaúmas, e aprendera a fazer tapiri de duas águas com os Waimiri-Atroari,que tinha ouvido garrincha-trovão e até o raro uirapuru no meio da tarde. Também deixou dentro do envelope uma espécie de segunda carta,uma fórmula talvez; mas nada me dizia aonde estava e como estava. Meu tio só voltou mesmo pra casa quando completou oitenta e oito anos de idade precisamente. Conseguira cumprir com o seu triunfo de espírito cientificista, boticário dos índios,agora podia descansar sem maiores questionamentos.
Esquálido,com uma barba profética e uma demanda de vasilhames empilhadas num baú com selos,assim voltava a passos curtos.Mais tarde resolveu transformar a sala toda numa imensa boticaria ambulante.
Era um caso sério negociar com o barbudo,eu odiava ver tudo aquilo ali espremido na pequena estante branca.Pedir pra que ele guardasse suas pesquisas em outro lugar,seria o mesmo que um mouro discutir com um cruzado empunhando uma espada na altura do peito.Fora a zombaria dos amigos que sempre quando chegavam,perguntavam :Vai montar uma farmácia?Ou quem é o Robson Crusoé?!
No dia 22 de maio de 1995 ao findar o almoço,sentiu-se muito mal,redimiu-se com o altíssimo,abraçou o retrato da pessoa que mais amou na vida e morreu sorrindo.
Nada mais me concentrava na casa,nada.As minhas várias perguntas,a velha cadeira vazia que por diversos meses desenterrou os comentários mais irônicos de Robson Crusoé,nem mesmo os seus escritos presos no velho baú,nada e nada dava crédito pro ânimo.
Eu tinha que sair dali,já estava decidido
'Libertas Quae Sera Tamen.'
A nova casa tinha um roxo que talvez ele fosse adorar,com janelas bay window e varanda bem larga,própria pra plantar:romãzeiras,amores perfeitos,petúnias,jasmins do cabo,balsaminas.O piso de tábuas com verniz ainda mostrava bom acabamento,e o quarto tinha armário embutido e era bem arejado.Paguei a mudança,e abri o velho baú pesado,várias e várias cartas amarelecidas.Do tempo em que os dois ainda namoravam 'Me espere na avenida central,em frente ao Palácio Monroe,tenho que ser rápida pois o meu pai já está desconfiando de nosso romance...


Um comentário:

Thiago Quintella de Mattos disse...

tô ainda tentando comentar aqui. Mas ainda tento digerir!