quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Maria Isabel



Havia uma insistência nele de importar-se com os pequenos olhares,caminhando rotineiramente as retinas sobre as janelas vermelhas envelhecidas com algumas estrelinhas douradas graúdas,onde as paredes da sala fria eram agredidas de maneira intermitente,pelo madeiro no vento que não descansava.
Na esquina onde uma senhorinha passeava com seu beagle energético,ficava com o pensamento distante,sofrível,talvez disciplinando com o que guardara das ruas estreitas,no interesse da voz que não desistia nunca o coração,algo prolongado por décadas e que lhe embaraçava estranhamente o peito.
Uma vontade mais forte e cheia,criando inúmeros preparativos,convites,marcando o armazém Melchior & Cavalcante,o pintor sensibilizado que descobria um novo rosto rosáceo,a padaria de que dava fila, os postes que beiravam luz nas conversas dos mendigos,os esgotos repentinos e fétidos construídos nas chuvas de julho, os zéfiros inconstantes que costuravam folhas amarelas caídas das árvores do centro.
E se acertasse hoje o caminho da canção fina e saltitante,da pequena casa que abraçava os abacateiros e sua madureza de frutos ,onde corresponderia os ouvidos influenciados ganhando suas horas na praça cheia,nos aplausos em casa com ingresso VIP,onde ele era muitos ouvidos e risadas isoladas por ela.
Ele que sabia melhor transmitir os seus choros cuidadosos pra casa azul onde crescia os seus sonhos encolhidos.
E Maria Isabel  quase todos os dias atravessava as mãos na cortina de seda com certo capricho.Onde os dedos trêmulos e suados descobriam a cidade e a brincadeira das meninas no pula corda,na avenida principal.
Perto de seu Luiz,um polaco que perdera um Banco e hoje vendia perfumes numa pequena banquinha exposta rente às margaridas vistosas e letras graúdas indicando os preços.
Pelos beatos passantes e chatíssimos com cheiro de ervas ainda constrangendo pessoas com discursos duros e apocalíticos.
O tecido branco corria com certa pressa,recolhendo-se aos poucos no canto direito onde repousava os livros da estante;para que visivelmente o sol manifestasse o seu calor egoísta nas costas do sofá marrom e nas folhas ordenadas sobre a mesa baixinha de jacarandá.
Maria Isabel gostava de cantar com largas escalas,e deixava um pequeno lacinho envolta à camisa branca,eram duas voltas bem trabalhadas no pescoço frágil.
Os pés  guarnecidos em saltos escarlates e os quadris vestindo uma média saia lilás plissada onde terminava pano nos joelhos e abria grande destaque para as pernas bronzeadas.
Quase todas as sextas-feiras saía às pressas,como um devoto atrasado adentrando embarafustante a procissão religiosa.
Na sexta-feira que se ia tinha que 
vê-la de qualquer jeito às seis,correndo veloz e desviando-se das poças como um menino arteiro.
Saía do bar do Aristides ajeitando os cabelos esvoaçantes com as mãos espalmadas,e ofegava a cada minuto pelos passos que ficava a dever;os passos cada vez mais pesados,brutos.
Os minutos sujeitavam qualquer atenção presa e tensa para os pés,os minutos poderiam ser longos demais e sabia.
Só Maria Isabel não suspeitava de nada.
E a sua voz era como um trovão bem agudo e cintilante ganhando vida pelos nomes de rua,abrindo encantos  e sonoridade ao coração,uma medalha após corrida,algo que ia pra plateia de um homem só que vigiava a janela portuguesa e esperava o findar do espetáculo para os aplausos.
Nada melhor responderia seu timbre de soprano,vinha daquele raro instante da tarde,e somente ele conseguia diferenciar e conversar bem os seus monólogos,por ela.
Os frequentadores do bar do Aristides já o conhecia de muitos carnavais,entre risadas e outros motivos jocosos,Aristides e os demais conversavam a respeito;tentando achar as inúmeras explicações pra tanto fanatismo do moço.
E ele nem se preocupava com isso,só se importava com o relógio e a admiração transparente que tinha pela loura do Coral.
Pelo pequeno corpo que via ao longe ensaiando e lhe convidando para outras estações.
Sentado agora com a camisa aberta no banco,tratava de beber da pequena garrafa e beijar um cordão feito de couro e topázio,a única coisa que a mãe deixara e que acreditava ser um amuleto de grande sorte.
Maria  andava de um lado para o outro observando o espelho,preocupada com o treinamento severo,imaginando as notas certas e a sua delicadeza.
E o castigo parecia presenteá-lo com os seus limites,bem de pertinho,sem avisar;ou não seria nada disso,seria coisa da sua cabeça? Talvez se passasse algo dispersivo,um prazer sereno e existencial?!
Ele mesmo nem sabia o que dizer,seria mesmo algo,assim? O que seria certo e o que seria,errado?Na ideia de pensar nela?E somente nela?
Esperar horas e horas por aquela única sensibilidade que lhe invadia e reconhecia as bobagens de estar, apaixonado?Num banco de praça? Tentava evidenciar tais curiosidades,porque nunca se achara em nada interessante e Maria estava tão distante,e tão distante...
As palmeiras balançavam diferentes e seu sorriso vinha conjuntamente sem perceber,entender a sua realidade que se perdia sem ao menos poder falar nada,sem nada de transmitir suas expressões e reflexão,tudo isso parecia lhe doer muito.
O mistério se guardava por detrás da porta e assumia esta vitrine todos os dias,e quando chegava o dia para cumprir a sua força,cumpria muito bem a sua promessa sem maiores dizeres pra quem quisesse escutar.
E compreendia a beleza que crescia tão amável,vinha em grande parte dos refrões que preenchiam sua alma feito uma andorinha cruzando céus certíssimos,vinha da Maria que lhe devolvia as vontades e o aprendizado acreditado no agudo.
Ajeitava os cabelos molhados e coçava a pouca barba,bebericava lento enquanto que os pombos pousavam perto de seus pés no concreto duro e quentíssimo.
Fica lembrando da primeira vez que viu Maria,e que fora um grande espanto imaginar tanta coisa em tão pouco tempo.Foi na igreja num domingo cinzento e que a impotência das pernas fizera muito efeito,queria tanto levantar e cumprimentar aquela mulher,fazer a diplomacia ser grandiosa e especial,porém;o que existiu apenas foi o latejamento do peito,e alguns pensamentos futuros e incertos.
Era um dia que queria esquecer o passado,furtar-se de certas lembranças,só que a imagem da mãe ainda estava muito presente,havia riscado na folha o oitavo dia de sua ausência.
Maria tinha percebido vagamente a presença,percorrendo as paredes douradas e os santos pousados em seus pedestais.Os cabelos volumosos e a face triste bem à sua frente lhe chamaram a atenção.
E a única arma que possuía era um palavreado preso que ameaçava prevalecer,e só ameaçava no fundo;nada mais.
E Rita acompanhava as amigas no andamento da música e nas risadas curtas,no medo de que saíssem da entonação musical.
Brincavam,beliscavam,entendiam,
deixavam acontecer a conversa silenciosa que pairava naquele lugar entre os dois.
Com os movimentos estáticos e após o coral;
permitiu que ela fosse embora,não sem antes lhe contar confidente e através de um bilhete esverdeado, os seus grandes poréns e sinais atarracados de paixão.
Entregou nas mãos de Lia que entendera o recado,ainda com a fronte baixa,no momento em que passava pelo genuflexório rapidamente e ia ao encontro da amiga.
Na saída,sua tia ia ao lado,
alisando-lhe o braço e contando os causos surgidos dos vizinhos,enquanto que Lia lhe entregava macilenta o papelzinho nas mãos e sorriso nos lábios,de maneira bem disfarçada sem que a tia percebesse nada.
No início achou um grande absurdo,ousadia gratuita de tentar a todo custo uma primeira conversa sem ter porquê,e em segundo porque desconhecia as fronteiras daquele homem que soprava mundos tão desconhecidos para suas noites acordadas.
Maria também queria soprar mundos de volta,queria esvaecer suas agonias que não tinham direções,alguém pra lhe firmar novas trilhas,seria ele?Pensava com a cidadela à mostra e com as miríades que abrilhantavam  montes tortuosos.
E então,os demais dias esperaram qualquer coisa de respostas,que não vieram até ali;a insistência e a sequência de pular aquelas etapas traçava muito bem a sua resistência supervalorizada,conversar com a Lia sobre o turbilhão de ansiedades que reinava no seu corpo,ganharia mesmo algo de tempo?Seria isso mesmo?
Porque ainda poderia desabafar outras mensagens que não saíam de sua cabeça,aliviar uma sequência de dilemas,sim,as vontades interessantes cresciam e decidiam o verdadeiro sentido da madrugada.
Seja o que fosse,queria naquele momento qualquer resposta de Maria,mesmo que fosse um não cruelmente aceito e lhe percorrendo veias.
Era inevitável então desconhecer a vontade interna,inevitável desconhecer aquelas pernas que caminhavam impúberes até a casa azul,e reproduzir todo gracejo que lhe passeava nos ouvidos.
Por muitas sextas-feiras Maria Isabel cantou sem que soubesse dos caprichos de quem lhe habitava tão querido.
E era ali acobertado de inquietações que ficava,entre um gole e outro,sem tirar o espírito parvo do banco,pensando na menina tão breve que ensaiava suas divagações.
E a chuva ia tomando os sobrados e  seus enigmas intransponíveis,caindo de maneira perdida sobre seus ombros frágeis,lavando os olhares arrastados,pesando os fios sobre o rosto suado,lhe refrescando levemente a pele seca.
Aguardava tudo em circunstâncias indefinidas, numa espécie de viagem estranha,bem calmo,tímido e com muitas flores apresentáveis.
Ainda que não fizesse sentido nenhum,ele ficaria ali, mesmo que lhe chamassem de bobo,ele ainda assim ficaria ali,só que de bobo ele não tinha nada e nem era.
Maria voltava o rosto para sua tia Mirtes,que profundamente solfejava novos procedimentos para o acerto musical.
Conseguia enumerar os trechos com impecável atenção,através dos óculos redondos de acrílico que pousavam no meio do nariz adunco.
Pedia que se expressasse devagar,com elegância,afinal de contas;não era qualquer voz nauseada que se arrastava pelo salão branco.
E ela então tocava sua  garganta cansada,ajeitava o laço de maneira terna e gentil,no bolso ainda ficava o pedido do estranho,alimentando um novo começo a se cumprir.
E como deixaria: a sua tia,e a pequena cidade,e o coral?
Como se desviar de tudo ao redor?Ficava por vezes muito nervosa,convencida de que aquele devaneio todo era apresentado como uma grande máscara perturbadora aos seus entendimentos pequenos.
Pela janela conseguia identificar as águas que compareciam com certo refrigério,e Rita então pôde perceber o vulto que se escondia atrás da barba e das palmeiras novas.
Era um velho monarca que não sabia e não entendia do seu reino.
As flores tinham um cheiro diferente e ele se sentia isolado,a chuva dançava e invadia os seus poros e o seu corpo esguio.Era uma espera doce,compreendida e reservada que explicava tudo.
E Maria lhe chamava de alguma  forma,lhe consumia,lhe espelhava o desejo.
Foi saindo aos poucos,com os saltos enterrando-se na gramínea curta,as pernas quase lhe provocando uma queda desordenada,o andar indo mais acelerado;e ele percebendo a cena pulou do banco num ímpeto extremo,jogou os pés bem pra frente,seguindo também apressado,bem atrás das duas.
A tia estranhando o homem desconhecido comentava o fato aos ouvidos,sussurrante.
Certa hora cansada,bradou 'Sai tarado do Aristides!Tarado do Aristides!' para ver se acabava com toda aquela palhaçada de perseguição.
Ele observava tudo ao redor,os velhos imóveis,árvores e os transeuntes distraídos que proseavam,não ficara com medo da voz,não,pelo contrário;continuou sua firmeza nos pés,sabia que a velha detestava o Aristides e as piadinhas de balcão no bar,sabia que o detestava.
Falou alto então,tentando chamar a atenção de alguma forma,disse algumas besteiras,já sabia que o 'não encontro' estava consumado e ia encerrar-se de outra forma
'Maria,preciso falar com você!Eu preciso falar com você!'
'Você não vai falar com esse troglodita,ouviu Maria?Quem ele pensa que é?Lhe procurando assim,perseguindo você?'
O andar agora ficava mais atrapalhado,e fôra possível surgir uma harmonia desconhecida que conversava,Maria tentava alinhar-se ao seu raciocínio,ao seu quebra-cabeças inacabado.
'Maria,o meu recado é verdadeiro,são tudo caminhos!Maria, podemos fazer tudo diferente!'
E foi arrancando o laço do colarinho que apertava,no seu silêncio imediatista,oportuno,lembrando de cada linha e dos acertos semelhantes de ambos,queria fumar um cigarro ali e sabia que a tia odiava cigarros,queria
falar-lhe a sua natureza,o bem-estar das linhas que sacudiram suas ideias como uma luva.
Enfim parou,mesmo que a força da tia ainda operasse qualquer seguimento,já sabia o que queria,não tinha como voltar atrás.
Deu um beijo na Mirtes e tirou os sapatos,foi correndo ao seu  encontro sem nenhuma demora,com aquela nuvens de promessas consumindo novas campanhas, debaixo da chuva,com o cheiro de flores irmãs,por que não?