segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Habitante

É manhã de dez horas e caminho com os pés descompromissados.O concreto quente de Santa Teresa,parece aumentar a sensação térmica de meu drinque,não tenho direção pra seguir e nem mais pedras de gelo pra manter.São duas quadras livres na reta e 42º de raiva.Gastei dois lenços e três telefonemas pra encontrar a casa.
O dia poderia até ser interessante,não fosse este tédio anormal à cumprimentar meus pensamentos de corpo e alma.Ela é tão bonita e cria um orquidário,e tão reclamante com suas porções de:falar,falar,falar e falar.
Sublinhou seus ataques congestionados à madrugada inteira.Foram ritmos suficientemente miseráveis para tirar-me do sério.Estes disparates da carne,mulher,juro;nunca compreendo. Acordou outras vidas,reclamações do apartamento de baixo.
Animal em crises de sentimentos e inverdades,isto é o que ela quer por franqueza.Desaguou boca no mundo,esquivando declarações tão óbvias.
Saí sem minha camisa e nenhuma despedida.Saí sem contar os beijos que poderiam lucrar cedo,sem minha presença inquilina que lhe acentuaria mais tarde à cabeça no sono.Procuro e procuro algo no bolso, sim;tenho ainda alguns tostões.As ruas me pedem tanto fôlego,sob o peso enxuto da ressaca que mata pernas.E lembro que devo ter esquecido meus pulmões lá também,num cantinho da gaveta marrom do quarto,que ainda me espera chegar um dia.Queria achar alguém,pra bater aquele papo duradouro e prosseguir certa manhã de paz,misturando chorinho,cinema,sombra confortável e copos na mesa...Diabo de tanta escada que não acaba mais,nunca vi;todos que eu conheço nesse horário devem estar no trabalho, e eu ainda aqui,desempregado de peito nu.
Olho com delicadeza os muros argênteos à minha frente,por detrás destas pedras tristes e curtas de casas,moram artistas que sonham os mesmos sonhos que os meus,e se não estiverem sonhando,futuramente sonharão.Juro que posso sentir cada peso,cada sintoma de ideias fluir e desabrochar pelas frestas da madeira,abocanhando sempiterno suas enormes portas coloniais.Se conseguir esticar o pescoço mais à frente,só um pouquinho,creio que eu posso enxergar qualquer coisa de arte.
Ela fica no seu contra-senso sorrindo de orelha a orelha,acaba o último pedaço de lasanha,ela adora lasanha.Não figura nada mais para seus atrasos.A decoração da sala fica envolvida por livros com brochuras rasgadas,revistas de moda de inverno,incensos de absinto que briga meia-vida com seus tabacos.Dúzia de pares de sapatos,cada um com sua cor.Quadros da cidade nascida,um porquinho rosa sem moedas,milhares e milhares de pincéis encardidos sobre o rack.Discos comprados em sebo que pega agora,seleciona sem imprevistos,a música vai ganhando a estante,pousa sobre o dinheiro emprestado,na roupa suada de festa de domingo que não lavou,no prato engordurado,na testa engordurada,até se jogar da janela e equilibrar-se nos galhos frescos da árvore de rua.
Compro um hot dog com bastante ervilha no largo do Curvelo,o senhor que me vende aparenta ter cinquenta anos,usa short vermelho,camisa do vasco e sua careca frita maldosamente,como maldosamente é minha opinião.A chuva espanta o calor,e me dissolvo instintivo,carregando minhas incompatíveis vértebras soltas por camadas de águas finas,que tomam posse como vagões desorientados,cavalo chucro de fazenda, se misturando às fezes competitivas,lixos publicitários,garrafas pet fascinadas por bueiros,varrendo-me em círculos concêntricos até chegar no meu desaparecimento de casa.
A letra de música se mistura às aguas e não estamos em Março.Mais precisamente falando, final de fevereiro.Ela fica lá sorrindo de orelha a orelha,e meus tragos nervosamente acabaram.Eu ainda não sei,mais esta mulher vai me fuder a vida!!

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