sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Seio da família


Eu deveria ter cinco ou seis anos de idade,e sonhava estudar as pirâmides que via no catálogo da enciclopédia verde...Meu avô já passava dos setenta e nunca achava sua dentadura.Acordava-me sempre bem cedinho,antes mesmo que o galo Haroldo pronunciasse os primeiros ditames da goela; e que o pequeno lume de sol cortasse e administrasse mais árvores atrás dos vales.Havia um pequeno poço artesiano que ficava ao lado do rio,escondido pela floração de macambiras violáceas com seus áculeos bem vistosos.
Ali debruçaríamos normais sobre a fonte suja.Ele;despertando mansinho e banhando a face esmagada de rugas.Eu, cumprindo o mesmo ritual itinerante sem maiores perguntas,lavando as orelhas e assobiando certas canções tristonhas,imitando o minúsculo personagem.Tinha seu quê de rabugisses esquisitas,mudanças de humores constantes,mas era uma coisa maravilhosa morar com esse homem.Minha avó religiosamente sumia de seus tricôs aprendizes, pra ler revistas de moda da cidade na choupana fria dos empregados.Que ora arrostava desimportante quando o velho encanava:-Deixa de teus desejos de consumo, Chica!Arre, que mulher sem cara!
Afirma-se que um tiê-sangue acanhado,dono de más línguas;gostava de aferrenhar silabicamente o senhor septuagenário de folclores,ao relatar que nunca as águas doidas de um mar azul,lhe lamberam as pernas.E que de azul, só era conhecido suas bilhas assustadas que banharam bairros,depois que sua companheira se foi.
Foi numa tarde sem vento,acredito.O feijão ainda apitava na panela de pressão,e as igrejinhas hermeticamente fechadas para seus beatos,não soluçavam prematuros badalos.Foi no mesmo dia que dei meu primeiro arroubamento de beijos,perto da ponte,quando voltava suado da escola dominical.
Ao passar pelo pé da escada,siderava o pequeno homem em despautérios incompreendíveis,socando vulcânico as paredes desnutridas do casarão.
Zé Bento,autoridade local,correu léguas para acudir o compadre emagotado por transeuntes curiosos.Mais tarde foi preparada uma romaria contada e uma campa adornada de flores repousou sobre a finada, presente que fôra ofertado pelo primo Pedro, neo-retirante em São Paulo.
No vilarejo ninguém grudava janela pra fuxicar sobre as dores de Constâncio.Nem eu mesmo, desacertado da rede e enfrentando pernilongos que deliciavam sangue nas beiradas das cordas.
Tiê,tiê,versificando,versiverificando,versifoificando.No alpendre dormido cantou tristezas dizendo que a velha morrera de 'esmorecimento urbano'.Ela queria conhecer os moços bonitos das novelas,os automóveis velozes que roncavam absolutamente emergenciais pelas estradas,queria reservar seus bordados nas páginas de revistas famosas,viajar incorrigível pelo Egito,como eu.
Por madrugadas, não me dava mais surpresas em perceber o quanto desagradável vinha;o velho arranhar de chinelos desmesurados do meu avô à rondar involuntário pela casa morta.
Nunca se perdoou pela sua partida.Desde então começou a conversa de direções,ensinando-me cedo a vida e seus comandos.Motivo pra consolar o esquecimento sem assuntar disto e daquilo.
Aprendi a fazer cofo de folha de bananeira em Axixá,e enganar caranguejos pra cair no bicho.Descobri que cheiro de café socado no pilão sempre foi mais gostoso do que o industrializado.E beber às duas da tarde com Constâncio,depois de horas preparando a robusta,fazia com que maciamente minha garganta partilhasse os melhores prazeres da vida;como foi a primeira vez que provei tiquira e não pude tomar banho por medo.
Era sempre às duas horas em ponto que ele arrumava a mesa.De um cavalheirismo carregado e único em posição de degustação.Passível até mesmo de ira para todo inglês que visse aquilo. Se comendo e morrendo de ciúmes.Dizia sempre que o segredo estava no preparo.
Ainda naquele ano vestiria o primeiro terno pra foto.Eu cuidava do apiário quando chegou meio bêbado,chutando algumas galinhas que ficavam à frente,e rindo sem permissões.Disse que a safra de café fôra boa,e deu pra comprar um belo corte de fazenda de casimira inglesa.
Fomos pra cidade.Meu rosto sairia mais sério em preto e branco,e ele;rindo.Antes que eu completasse as dezenove primaveras,e tendo juntado os trinta selos da revista científica e geográfica brasileira,ganhei o sorteio com direito a uma passagem pra Alexandria.Ele não quis e nem fez questão de entender nada,mas deixou eu seguir viagem.
Aprendi inglês,mandarim,javanês e gastronomia.Fiquei solto no mundo dos literatos,e troquei as pirâmides de minha infância por Mikhail Baryshnikov.Em tudo eu dava detalhismos em cartas, que ora era respondido abruptamente, nas letras perfomáticas de Zé Bento.
Meu avô morreu sem economias,com os cabelos bem branquinhos sobre os ombros.E de nada adiantou sua saúde de touro;quando a febre tifóide quis vitimar morada ordinária sobre seus ossos.
Hoje aqui em Marais bebo meu gourmet coffee escuro,pausadamente.Sempre às duas horas.Sempre ele rindo do alto da cômoda no porta retrato azul que ganhei.

3 comentários:

Tati disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tati disse...

Você sabe: gosto de te ler. Gosto por vários motivos. E quando a gente carrega a amizade, a admiração fica ainda maior. E é isso que vim dizer hoje: que seus textos merecem criar vida. Vida própria. Caminhos novos. Precisa andar por caminhos mais longos, longe, ali, adiante. Seus personagens todos merecem algumas janelas. Precisam ser vistos por mais pessoas.

Fico feliz por ser uma pessoa que conhece seus personagems reais e imaginários nesse seleto mundo de coisas grandes e desimportantes.

Beijos paulistas. Saudades imensas!

Unknown disse...

Pois é... eis que depois de tempos adormecidos, suas personagens resolvem das as caras por esse mundo tão insano. E assim começa a aventura de um homem...

Seja feliz mon amour!