quarta-feira, 2 de abril de 2008

Despedida

Vai secando o suor que lhe cai da testa com um pano branco.
Do banquinho pequeno da lanchonete pede um pedaço de lazanha grande.Pede que a mulher o esquente no microondas.A garçonete pergunta se quer mais alguma coisa,e ele sim;um suco de uva por favor.
Fica mastigando levemente a massa,uma mistura de catchup e carne moída enroscando-se na língua;bolo alimentar gosmento no céu da boca.A visão dos olhares que ele crava dali repentinamente e fulminante;é uma análise amadora dum engarrafamento gigantesco que se perpassa pela porta vermelha do recinto.Quilômetros e quilômetros de metais e vidro buzinando e xingando sem sentido na rua estreita.Sabe que ainda vai ter que voltar pra casa dirigindo,duas horas de aventuras por buracos e pensamentos recolhidos;até desfolhar-se por total na melancolia da cama.
Um senhor ombrudo e de sobretudo atravessa a porta. Vem por andares decepcionantes.Tem olhar de psicologia degenerada,ele logo vê de cara.E na mão esquerda forte e brutalizada que não pára de tremer,segura um guarda-chuva azul.Um café.A garçonete acena positivamente para o cliente.Com leite, senhor?Sim, com leite minha filha,por favor!Assunta conversa fronteiriça com ele.Sabe,há dez anos que estou neste dilema louco de tentar parar o café.É bem difícil.Deus sabe o quanto!Mas é que eu não consigo deixar de largar este bendito...E café quentinho pra mim é sinônimo de cigarro mais tarde,mas lógico;não vou fumar aqui não,aqui não pode;não senhor.Tem que seguir as leis dos homens,neste recinto não.Olha lá o que diz.E aponta com o indicador em riste.O adesivo engordurado colado à parede.Proibido fumar.Ele olha pro adesivo também.Se faz de desentendido,solta um olhar pra fora e percebe a multiplicação das rodas.Acontece,normal, tem dessas coisas na nossa vida.Da vida a gente nunca se espera a coisa mais certa meu senhor.Corta agora um pedaço grande e manda para a boca.Mastiga em quinze ou vinte vezes os resquícios da bolonhesa,triturando a raiva;triturando o homem que lhe aborrece.Outro dia eu descobri que eu estava com câncer de pulmão,sabe...Veja só,câncer;nunca pensei que isto um dia pudesse acontecer comigo,aos sessenta anos.Eu que me cuidei tão bem a vida toda.Cuidei de mim e de toda a minha família,toda a minha família...Que grande merda,pra quê??Mulher,filhos;o meu pai que de repente ficou louco,até o genro folgado eu soube cuidar muito bem.Pra nada.Pra naaaddaaa.E abria os braços como Cristo.Eu já tive essa sua pele elástica aí de garotinho,de rapaz.O rosto gordo,vermelho,sem nenhuma ruga,sim.Sorri arregalante agora e tossindo.Estou tomando tudo quando é fármaco pra combater este troço,mas não adianta,o bicho dói como o danado nos alvéolos,e dirigir então,incomoda muito mais.E olha esse trânsito lá fora,uma serpente de metal gigantesca.Uma merda total.Realmente uma merda total.Termina o café.Eu acabo meu lanche.
Me dá dois tapinhas no ombro direito e pega o guarda-chuva .Chegando na saída acende um cigarro.Não sei se está indo enfrentar o engarrafamento ou a própria morte...

11 comentários:

Tati disse...

ADoro vir aqui tomar um café. E esse texto de despedida é áspero. É escrito com uma quase banalidade de como o próprio personagem viveu sua vida (ou como ele a encara). Seria isso mesmo?!

Jordan Duailibe disse...

Que bom que você gosta Tati,pra vc sempre puxo a cadeira melhor da casa pra sentar.Diríamos que ele desistiu da vida Tati(risos)-E esta coisa de desistir;impõe então a sua banalidade de tempo.A desculpa mais esfarrapada dos males ele apresenta no café;quando na realidade ele não queria mesmo era largar o cigarro.Aí então o café assume esta fome,esta necessidade ou conforto de seus desesperos operantes.

O Profeta disse...

FAbuloso texto meu caro amigo...és uma grande ficcionista...


Hoje não vou falar de amor
Hoje tenho saudade de canções
De uma voz perdida no tempo
Que me ensinou o sonho, as emoções

Hoje senti saudades da minha rua
Da casa fria e quente da ternura
Do cheiro a lenha, pão amassado
Dos abraços tidos de forma tão pura


Hoje convido-te a saberes um pouco de mim

Um resto de boa semana



Abraço

♥MáH♥ disse...

ufa!!! que despedida mais dura, com ares de simplicidade...
Partir assim... sem tanta dor exposta... aiii
rss
doí em mim.

Café quentinho... muito bom... só espero que os cigarros diminuam... rss

Bjinhuus!
Eu volto!

Mariana disse...

Adorei o som do blog.
Adorei o texto da despedida, me envolveu e queria ir além do fim...

Eu gosto de textos assim.

Vou linkar para voltar mais vezes!
beijos!

Nathália E. disse...

Hmmm!
Lasanha... Café...
Muito bom!

Só não é muito bom essa coisa de despedidas. A não ser que quem esteja indo embora seja alguém extremamente irritante! Nesse caso: TRAGAM MAIS LASANHA E CAFÉ!
Rsrs

Beijo!

Tati disse...

Definitivamente ter a melhor cadeira da casa é um privilégio... risos!!!

Realmente adorei esse post!
E passei aqui pra dizer que acabei de postar um texto que sou apaixonada e acho que vc tb vai curtir... é do Miguel Luna, é lindo, é tão real!

Beijos. E feliz nova idade de novo!

Ju disse...

hj jantei lasanha e suco de uva. primeira surpresa ao ler teu texto. no segundo parágrafo começa a tocar a música do B&S q amo. e no terceiro um texto divino... que presente, hein?
beijos

Mariana disse...

olá! obrigada pela visita e pelo comentário!!

Te linkei lá!

beijos

Anônimo disse...

http://dhuzilda.blogdrive.com/

este é o site dela. Mas vc vai ter q procurar, pq faz tempo que ela não escreve.

Ab,

Heloísa

BIA disse...

..Sento-me, e aceito o café!

Você expressa-se lindamente! Estou encantada!

BIA