domingo, 20 de abril de 2008

Manhã de outuno

Há certo tempo escrevi este texto... E faço questão de colocá-lo aqui, com algumas alterações que achei melhor reproduzir...

Naquela manhã de domingo outonal, chovia um torrencial sem fim.Os zéfiros intranquilos varriam folhas nas escadas tristes. Cascatas de águas combativas corriam grossas lá fora; submissas criaturas ao controle das curvas nas calçadas. Serpente espumosa cinza se desdobrando: vasculhando sarjetas desavisadas, jornais de datas passadas, e lixos residenciais esquecidos nos canteiros de becos.
Os galhos eram senhores de músculos maduros, sacudindo violentos os seus ramos como se dissessem adeus. Inúteis acenos rasteiros chegando até a janela azul do meu quarto. Os sons de buzinas de carro vinham gravíssimos, catapultavam impurezas de sons pelas frestas das madeiras envernizadas. Parecia que nada de estranho naquele dia soaria diferente para mim.
Só que aos poucos, um vislumbre estranho dos diabos foi censurando-me naturalmente,eu sentia isso,sabia disso. E me nascia um refrão perturbador debaixo dos lençóis; remoendo-me borboletas ariscas na barriga.
Por todos os dias que vivi até ali, naquela choupana magra à margem do rio; meu pai sempre era o primeiro a acordar,e logo ia varrendo a casa,e varria alto, e cantava alto,e mexia no som procurando estações como desculpa, pro nosso despertar rápido.
Adorava cantar certa canção conhecida de meu avô que não conheci e que; puxava de ouvido quando a vitrola começava a rodar, e saía um ruído farto; preenchendo todas as escadarias da casa salmão.
A voz de barítono e suas paixões explodindo dentro; um grave certo nos pulmões soltos, chegando até aos meus ouvidos,até os meus sentidos.No que tinha de mais promissor no coração morto.
E nervosamente de camarote, aplaudia em silêncio o velho.
Mais isto não veio. Nem veio nada daquele jeitinho manhoso de chegar até meu quarto,com os pés leves. Não veio aquele abrir de porta que rangia seco, bem atencioso, incursionando pernas rápidas e abertas.
Cobrando-me por fim e infiltrante, o bom dia caprichado dos dias que não negava.
Ele estirava sempre um pouco a nuca queimada assim, bem pra cima,a nuca rosada;para que eu pudesse me agarrar bem forte ao seu tronco, e sentir o cheiro de "English Lavander "que se transpirava fácil da gola, a nuca toda cheirosa.A barba me arranhando leve e sussurrando ‘bom dia filhinha’ isso veemente adorava.
Mas nada disso acontecia naquela manhã, e tudo em mim me deixava nervosa, e tudo revoltava,e meus olhos sem respostas,sem direção; perseguiam desenhos imaginários na parede.Por que tanta demora?Por que não varreu a casa,nem jogou um disco na agulha?? Existia somente o vazio, e ele se crescia por toda cama, pelas roupas sujas, nos móveis brilhosos, nos azulejos desfigurados frios do chão.
Minha mãe assava carne na cozinha, e o cheiro que me chegava até às narinas convidou-me pra resolver o mistério paterno.
Saí do quarto em camisola ainda, segui clandestina para o interior da suíte, e para a minha surpresa ele estava lá; dobrando peças e peças de roupa, acomodando-as todas numa mala azul, que ficava debruçada ao lado da cama.
A primeira coisa que fiz foi berrar o seu nome, e mais tarde de forma robótica e sem fôlegos, lançar-me aos seus braços, achando de novo minha fortaleza.
Seus olhos; marejados de algo que não entendia, espiava serenamente a minha pessoa. E num rastro de quase mudez declarou que iria viajar, mas voltava,prometeu.
Viajar, eu adorava viajar, meu pai me contava tantas coisas dos lugares,e eu batia tantas fotos,disse que iria também com ele... Mas ele acenou negativamente com a cabeça, e quando ousei furtiva montar minhas peças na malinha rosa que havia me dado de aniversário no verão passado; falou bem alto, e disse que era pra deixar isso pra lá, ou ia dar-me uns safanões pela desobediência.
Depois disso esfriou a cabeça.Pegou na minha pequena mão quente, e fez-me segui-lo até a porta.Mais tarde se agachou e beijou minha testa, olhou-me nos meus olhos apenas... Acariciou o meu rosto,e nada mais...
E saiu a cantarolar do mesmo jeito que sempre gostava, descendo ladeira abaixo com sua sombra grande, sem ter dito um tchau à minha mãe.
Corri apressada até as saias dela, e derrubei vozes dizendo que queria meu pai de volta, que não viajasse para outro lugar,que nós fôssemos com ele.
Ela na sua emoção fria nada disse, oculta; fechada,chorou por dentro e continuou o trabalho na cozinha, como se nada daquilo ali tivesse acontecido.
Depois daquele outono, nunca mais o nome de meu pai fora tocado na mesa, aliás; era terminantemente proibido de expressá-lo no recinto.
Algumas vezes cheguei a sonhar com ele cantando pra mim, pausado e bem forte. Daquele mesmo jeito terno que investia letras.Às vezes achava que meu pai iria buscar-me pra viajar,e sorridente; arrumaria a minha malinha nervosamente.Mais nada disso aconteceu por anos ... Quando eu contava então com quinze primaveras; a surpresa veio.E caminhamos viçosos e de soluços, sem idéias pra entender propriamente as razões da vida,do porquê de tudo aquilo,deste apagar tão forte da afetividade.E sorrimos sem sentido,e tivemos várias tardes boas nos verões.E meu pai pediu pra guardar segredo de tudo isso,sem direito a argumentações.E após,cumpriu com outras estradas.
Um dia minha mãe morreu e com ela levara o segredo da ausência dele. Nunca o perdoou por isso. Nunca perdoou seu afastamento.
Hoje revisito a casa em que morei a vida toda, depois de doze anos passados.
E diante de tantos móveis empoeirados e roídos, a vitrola ali quase invisível; coberta por uma flanela rosa, espera complacente que alguém a toque novamente.
Um disco.Uma música.E a saudade perdida embriaga-se nos meus ouvidos. Curiosamente atinge todas as escadarias, e morre no quarto pequeno de bonecas acima, que ainda espera o sol sair após a chuva.
Uma segunda voz parece visitar o lar, olho para trás, e disparo coração às pressas, para o tronco do imenso homem de terno e gravata que chega com o sorriso amarelado.
E eu ainda imóvel, tentando associar palavras no elo perdido de mim, fico apenas a observar.Vem com o velho perfume que enfim me cicatriza a agonia secular.
Remetendo frases de velhas e boas esperanças perdidas ‘Bom dia minha filhinha...’E tudo dentro da casa,vai me remoçando perdidamente pelas veias...

16 comentários:

O Profeta disse...

Fabuloso texto...fiquei particularmente impressionado...


Abraço

Angela Ladeiro disse...

bonito mesmo..obrigada por ter escrito...

Mariana disse...

Adorei o texto... a minuciosa escolha das palavras o tornou muito belo...


beijos

Marta Vinhais disse...

Se tu viesses ver-me...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


Florbela Espanca

Obrigada pela visita....
Gostei também do teu texto...
Espero ver-te por lá novamente...
Abraço
Marta

Mariana disse...

Sabe que a leveza que vc me disse que o texto transpassa, me surpreende pois quando escrevi as palavras eram de grande pesar.

Acho que eufemizei sentimentos muito doídos, e eles ficaram leves!

fiquei feliz!

obrigada pela visita! beijos!

Sayonara Melo disse...

Olá, Jordan... vim retribuir a visita. Tão belo texto, com tão bem postas palavras me deixaram emocionada. Lembrei de meu pai e de minha terna infância. Obrigada.

Unknown disse...

Há pessoas que têm facilidade em brincar com as palavras e tu és uma delas :)

Gostei e voltarei!

Obrigada pela visita :)

Beijos

Ju disse...

nossa! lindo, lírico, poético, sinestésico, feminino. estou sem palavras mesmo, extremamente lindo. que alegria poder trocar idéias, pensamentos e sentires com vc!
beijos.

Sayonara Melo disse...

Ei... estou cá outra vez... que bom contar com sua leitura... também voltarei sempre aqui, pois há muito a ler. Abrçs.

BIA disse...

Cheguei, fui entrando, "achegando" perto...

Ao ler este seu texto, não consegui parar, fiquei com vontade de mais...

A sua expressividade seduz-me, prende. É uma expressão que combina com o meu gosto de ler...Escreva...Mostre o que tem guardado, eu apreciarei, sempre que possível, e serei muito grata pela partilha!

Abraço de peito aberto ao seu!

BIA

Unknown disse...

Nossa amei o ajuste... Esse com certeza foi um dos melhores textos já escritos por vc... minha joiá rara... Te amo querido!

Mariana disse...

o que acha de atualizar? he he he

venho sedenta pelas tuas palavras...

beijos

Tati disse...

Hoje lembrei de você. Estou compilando alguns filmes e trilhas sonoras, e lembrei de quando vimos Moulin Rouge (foi tão divertido e diferente!!! Risos)

Adoro as manhãs de outono. Gosto dos seus textos. E gosto das manhãs quase perfeitas de outono.

Beijos querido.

Alessandra Castro disse...

Belo belo texto, demonstra mesmo toda a agonia adquirida na perda de um ente tão querido. O não saber é simplesmente mais doloroso, não importa o quão ruim possa ser a verdade.

=*

Alessandra Castro disse...

Atualiza querido! =*

Tati disse...

Voltei pra pedir atualização do blog pra mais uma dose de café e alguns charutos.

Saudades. Beijos paulistas.