sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Giuliana

  
E observava a casa velha entre os abacateiros magros e descascados,casa velha que administrava os sonhos impotentes desde criança,no fim da pequena estrada de barro e pedras,na fatalidade do obscurecido sol que morria atrás do moinho,e que compreendia uma fachada branca com desenhos abordando naturezas primitivas e um entalhe indiano com folhas frondosas assumindo colunas,e que moderamente abria linha circular até atingir a porta de entrada cortada em ripas.
Vestia regata branca e azul índigo,cabelos molhados que exploravam os ombros curtos,duas argolas prateadas na orelha,alguns discos de rock progressivo debaixo do braço e três cigarros no bolso direito.
Os olhos perdidos,cegos,mediante os vitrais escarlates que reinavam sobre os cantos da sala e sofás,a foto da namorada que continuamente causava reconstrução pro seu estar no mundo,uma impertinente sensação que lhe cobria o sossego do corpo,a arrumação dos móveis à antiga que ainda guardava da mãe;ali,naquele ponto incomum em que discorria suas ideias,sentou sobre o carpete felpudo e deixou a agulha estender-se pelas janelas retangulares,atingindo o orquidário caseiro,a mesa de jacarandá com fruteira e dois vasos de louça que a prima havia trazido de Belo horizonte,invadia as cores de Monet e Renoir,das botas e chinelos,dos livros espalhados pela estante e o cheiro de grama molhada após chuva.
As sofísticas frases que alimentavam a espinha dorsal e que apelava pra uma espécie de estranha tristeza, carregando na carne e assumindo um andar desenfreante e torto até a vitrina,correndo contra sua nuvenzinha de horrores e retirando dali uma agenda com capa de alumínio arranhada.Alguns cartões antigos,páginas depenadas sobre o qual a mão folheou à convite do passado sem razões,alguns dizeres escuros proferidos,corações pintados e ordenados nos números de datas,nomes riscados,baralho de frases,seta indicada com a palavra 'medo' na letra C.
Não obstante conversava com seus sorrisos sem respostas,em cada página e em cada lembrar perdido;um rejuvenescimento contínuo,declarado,exercitante, tudo certo na espinha dorsal que pedia flexibilidade e limpidez.
Foi em setembro de 1968,gravata borboleta tirada da gaveta pra uso no catecismo,do cheiro particular do Bobó de camarão de Dona Zinha que mexia com perpetração leve,cozinhando a mandioca no leite de coco e mais tarde sendo levado pro liquidificador,amarrava um guelê branco farto e penduricalhos de penas com cores vivas,cheiro bom que me falta ao estômago até hoje de Dona Zinha,depois o bolo de macaxeira ralada crua e a tapioca servida com café encorpado na mesa xadrez,trazia o bule fumegando e xícaras douradas,naquele verão de arder terra eu ia ao catequismo e furtava terrivelmente cajus do Dr.Mauro com Biné,perto de onde o sr. Nicolau com sua fastidiosa tarefa, arrebentava madeira pra juntar lenha e eu descobria o mundo pela fechadura do quarto de hóspedes, magnético.Era a mistura do profano e religioso,coisas que resgatavam a pequena agenda e música,desejos uniformes,desejos coibidos e virgens que selava meus teatros, comicamente.
Eu já passava para o terceiro disco e mais algumas páginas,como pôde ter ficado ali;por tantas e tantas passagens e eu nem sonhar em
tocá-lo?
Desacertos,estações,domingos,
estudos,derrotas,condenações,
postais,musicais,namoros,
telefonemas,fotos,fotos e fotos e eu tentava sequenciar o campo de infantaria dos atrasos,e analisava a agenda em entender suas empalidecidas folhas e seus sábados e seus casos, e eu nada de saber dizer,nada de melhor definir o demasiado descaso de jogá-lo de lado.
Porque tantos maltratos barulhentos rodeando os passeios,vozes altas arranhando os ouvidos,e linhas irresponsáveis que foram crescendo no somar dos anos,o mundo não lhe pertenceu,chegou tarde pra entender os comportamentos,as frustrações,o longínquo parecer da sabedoria.
E agora são outras águas que descem sobre sua cabeça,sobre os telhados de louça onde esconde a Monark laranja aposentada na garagem.
Das aventuras cortando o riacho da mijada da velha,sinuoso leito em que atirava pedras e confessava segredos pros Umbuzeiros afastados,por que tentar agradar e nunca vir uma resposta de consolo?De tentar ser amado,tentar ajudar,ser interessante?
Ainda dava tempo de chamar a Giuliana,esperar a sua companhia avançar e tomar os severos acertos e pegar a Monark e subir os terrenos ajardinados com ela,desfazer aquela atmosfera cinzenta e a música então girar como passista de escola de samba,e o torrencial vagarosamente conduzir-se pras montanhas e descerem em curvas caudalosas,por entre pedregulhos e galhos secos,e teimar nas investidas das pedaladas e esquecer a última vez que o arenito amarelo polido fechou no enterro do pai com coroas,a pedra tapando o rosto e a volta sem um porquê de palavras,foi nesse mesmo dia que conheceu Giuliana,tão poucas linhas de conversas e uma ausência de séculos até o próximo encontro,Giuliana tinha 12 anos e usava uma jardineira verde,eu carregava uma gaita e um bloco de notas e detestava a minha gravata,fomos apresentados sem cerimônias e entre cochichos,e desde então nunca esqueci o rosto da menina de jardineira verde.
E se ela atravessasse insipidamente aquele matagal do jardim, e combinasse o seu vestidinho azul e flutuante,e cortasse as flores e chegasse até a porta e tocasse a campainha,do seu jeito séria,porque ela sempre aparentava feição séria,porém eterno sorrisos cobriam suas maçãs; e que depois gerenciasse uma sutil atenção e repousasse a firmeza dos olhares pela sala que respirava músicas,e somente o coração sabia o quanto eu precisava da Giuliana,decididamente.
Giuliana toca a campainha,eu escondo de novo o caderno pra vitrina,saberá quantos verões eu não irei procurá-lo novamente.


 

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